Dom Orani João
Tempesta
Cardeal Orani João Tempesta
Arcebispo do Rio de Janeiro (RJ)
Arcebispo do Rio de Janeiro (RJ)
A
“revolucionária” ideologia de gênero vem tentando se implantar no Brasil por
meio de grandes esforços do poder reinante ou dominante. Diante desta situação,
incumbe-nos, enquanto brasileiros e cristãos, saber o que é essa ideologia
muito comentada, mas pouco definida, quais são suas raízes, como ela se impõe,
que objetivos tem e qual deve ser a nossa posição frente a ela.
É ponto
de partida desse sistema ideológico o seguinte postulado: nós nascemos com um
sexo biológico definido (homem ou mulher), mas, além dele, existiria o sexo
psicológico ou o gênero que poderia ser construído livremente pela sociedade na
qual o indivíduo está inserido. Desse modo, em última análise, não existiria
uma mulher ou um homem naturais. Ao contrário, o ser humano nasceria
sexualmente neutro, do ponto de vista psíquico, e seria constituído socialmente
homem ou mulher.
Nada
de novo debaixo do sol. Simone de Beauvoir, filósofa existencialista, já dizia
exatamente isso. Não se nasce mulher, mas você se torna mulher; não se nasce
homem, mas você se torna homem. Em suma, nada dependeria da natureza, mas, sim,
de uma construção sociocultural capaz de levar a relações igualitárias entre
dois seres humanos, naturalmente, diferentes quanto à sexualidade.
Uma
Nota da Conferência Episcopal do Peru, emitida em abril de 1998, com o título
La ideologia de género: sus peligros y alcances aponta a raiz marxista e atéia
desse sistema ideológico e assegura que segundo a ideologia de gênero, não é a
natureza, mas a sociedade quem vai impondo ao homem ou à mulher certos
comportamentos típicos. Desse modo, se a menina prefere brincar de casinha ou
aconchegar a boneca isso não se deveria ao seu instinto natural à maternidade,
mas tão-somente a uma convenção social dominadora. Se as mulheres se casam com
homens e não com outras mulheres, isso nada teria de natural, mas dever-se-ia
apenas a uma “tradição social” das classes dominantes.
Mais:
se o homem brinca de bola e sente necessidade de trabalhar fora de casa a fim
de melhor sustentar a família ao passo que as mulheres preferem, via de regra,
passar mais tempo em casa junto aos filhos (cf. Sueli C. Uliano. Por um novo
feminismo. São Paulo: Quadrante, 1995, p. 51-53), não estariam, de modo algum,
atendendo a seus anseios inatos, mas apenas se acomodando ao desejo elitista de
uma tradição opressora que deve ser rompida a qualquer momento. Sim, pois
segundo os defensores da ideologia de gênero essas construções sociais
opressivas só serviram até hoje para minimizar a mulher frente aos homens.
Seria necessário conscientizá-las de que a sua vida de casa, cozinha e criança
não tem mais sentido, essa conscientização levaria a mulher a entender o quanto
é explorada e enganada pelo modelo patriarcal de sociedade em que vivemos.
Uma
vez liberta, ela poderia optar por reconstruir-se do modo que bem entender.
Faria a sua escolha sexual com todas as consequências dela derivadas, ou seja, poderia
também optar por levar adiante uma gravidez ou praticar o aborto que, na
doutrina de gênero, não seria crime algum, mas, ao contrário um direito que
caberia à mãe. Embora, para não chocar a sociedade com o homicídio, prefira-se
um termo manipulado por meio de engenharia verbal como é, por exemplo,
“interrupção voluntária da gravidez”.
Isso
posto, já devemos – com a Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre a
colaboração do Homem e da Mulher na Igreja e na Sociedade, da Congregação para
a Doutrina da Fé, de 31 de maio de 2004 – aproveitar fazer, rapidamente, a
refutação de duas correntes contemporâneas que propalam pensamentos absurdos a
respeito da mulher: a subordinacionista, que a vê qual escrava, submissa ao
homem em nível familiar e social, e a de gênero, desejosa de apagar as
diferenças naturais entre homem e mulher. Afinal, a Escritura apresenta a
mulher como ezer (auxiliar ou companheira) do homem por analogia com Deus que é
ezer do homem (cf. Gn 2,4-25; Êx 18,4; Sl 10,35). Há entre mulher e homem
complementaridade, apesar das diferenças fisiológicas e psicológicas (não
meramente culturais). Iguais quanto à sua dignidade – um não é mais que o outro
– não se identificam em suas características peculiares, pois Deus criou homem
e mulher, não um andrógino polimorfo ou capaz de ter várias formas.
Outro
ponto a ser refutado é o que defende a liberdade de construção sexual. Com
efeito, assim como toda ideologia, a de gênero – considerada pelo estudioso
argentino Jorge Scala, em sua obra Ideologia de gênero: neototalitarismo e
morte da família (São Paulo: Katechesis, 2011), a mais radical já conhecida na
história, pois se aplicada destruiria o ser humano em sua integralidade e, por
conseguinte, a sociedade, cuja célula-mãe é a família – é também mentirosa. Ela
oferece às pessoas a ilusão de que serão plenamente livres em matéria sexual,
contudo, uma vez que essas pessoas tenham tomado a mentira por verdade, são
aqueles que detêm o poder real que escolherão, a seu beneplácito, o modo como o
povo deverá – padronizadamente – exercer a sua sexualidade sob o olhar forte do
Estado que tutelaria para que cada um fizesse o que bem entendesse. Dentro da
cartilha estatal, é óbvio. Só não se toleraria, por enquanto, as relações
sexuais não consentidas, todas as demais seriam válidas e deveriam ser
toleradas pelo Governo e pela sociedade em geral como lícitas.
Ora,
uma ideologia tão antinatural e artificial dessas não consegue se impor do dia
para a noite, nem recebe tão fácil acolhida da população, mas, ao contrário,
provoca resistências entre as pessoas sensatas em geral. Daí os arautos da
ideologia de gênero usarem, de modo conjunto, importantes estratégias para
dominarem o grande número de hesitantes.
Sim,
é imprescindível contar com os meios de propaganda de grande alcance tais como
o rádio, o jornal, as revistas, a TV, a internet, pois são veículos de
comunicação unidirecionais, ou seja, não permitem que o receptor da informação
dialogue com o emissor (sabemos como são manipuladas as opiniões que se enviam
para os sites) para, no caso de gênero, por exemplo, contestá-lo das inverdades
que diz. Apenas se aceita muito passivamente aquilo que lhe é transmitido.
Outro
meio formidável é o sistema educacional formal ou a escola. Por meio dela – em
um processo educacional inverso ao que sempre se conheceu, no qual o papel
primordial da educação ética e religiosa cabe aos pais – se veiculariam os
métodos impostos pelo Estado a ditarem as normas de vida social aos alunos e
estes deveriam, em casa, ensinar seus pais ou responsáveis doutrinando-os a fim
de que também aceitem as novas concepções totalitárias, incluindo como
carro-chefe a revolucionária ideologia de gênero, mãe de todas os outros
“libertinismos” sexuais.
Tudo
isso, porém, depende, para ser imposto, de uma ardilosa máquina de propaganda
que age especialmente, a partir de três etapas fundamentais: primeiro, usar,
desde logo, uma palavra comum, mas com sentido totalmente diferente. Desse
modo, falar-se-ia em sexo e gênero, alternadamente, como se fossem meros
sinônimos até que as pessoas, de maneira imperceptível, começassem a usá-las
sem se questionar, ao menos em alguns ambientes específicos como as escolas,
redações de jornais, rádios, igrejas etc.
Segundo,
bombardear a opinião pública pelos meios de educação formais (escola) e
informais (rádios, TVs, jornais, revistas, internet) valendo-se da palavra antiga
com sentido novo ou transfigurado pela cirurgia ideológica nela realizada. Aqui
já se substituiria o vocábulo sexo por gênero e se lhe acrescentaria os
sentidos revolucionários de “sexo socialmente construído” em oposição ao sexo
biologicamente dado pela natureza, falar-se-ia em “tipos de casamentos” e não
mais no matrimônio monogâmico e estável com bases religiosas, etc.
Observa-se,
então, que as pessoas aceitariam o termo clássico (sexo) com um conteúdo novo
(gênero). Estaria imposta, por uma forte “heterossugestão”, um novo modelo de
pensar: simples homens e mulheres, sem qualquer pressuposto filosófico,
sociológico ou antropológico, estaria falando, de modo falacioso, que gênero é
a “autoconstrução livre da própria sexualidade”. A opinião pública estaria
dominada para acatar todo tipo de “vida sexual” contrária à natureza:
poligamia, prostituição, orgias, pedofilia, pornografia, zoofilia (relação
sexual com animais), necrofilia (encenação de ato sexual com defuntos) etc.
Tudo
isso graças ao substrato de uma nova linguagem de características obscuras,
próprias para causar confusão na mente de quem com elas toma contato, evitando,
assim, que o ouvinte ou o leitor consiga rebater a mensagem implícita naqueles
termos que parecendo esdrúxulos têm uma finalidade muito específica na
veiculação da ideologia de gênero. Alguns deles são “sexismo”, sexualidade
polimórfica, homofobia, “androcentrismo”, tipos de família, “parentalidade”,
heterossexualidade obrigatória, etc. e quem toma contato, sem pressupostos, aceita
às escuras tais termos e os repete trabalhando, ingenuamente, para a ideologia
de gênero e, por consequência, contra a vida, a família e os alicerces da
própria sociedade.
Pergunta-se,
então, se diante de uma ideologia “revolucionária" e perversa, como se
revela ser a ideologia de gênero, cabe aos católicos a coragem ou o medo? –
Scala responde com uma citação de Jean Gitton, filósofo francês, que diz o
seguinte: “Em todos os séculos, diz-se que a Igreja vai cair, e ela se mantém.
É incrível. Em cada século diz-se que não é como os séculos precedentes, que
desta vez é definitiva e que a Igreja não se salvará. E sempre se salva. Veja,
ainda no século XX. O comunismo a enterraria. Todo mundo dizia isso. Eu também
esperava o pior, na Europa e em todos os lugares. O que aconteceu? A Igreja
enterrou o comunismo. E já veremos que a mesma coisa vai acontecer com o
liberalismo que se acredita eterno. Aos olhos humanos nenhuma pessoa sensata
poria um centavo nas ações do ‘Catolicismo’. Hoje em dia se diz: o consumismo e
o sexo varrerão a Igreja. Bom, eu não acredito. Uma vez mais, acontecerá algo,
não sei o quê. Repito: é incrível. Toda esta história é inverossímil” (Mi
testamento filosófico apud Scala, p. 195).
Certo
é que não basta só confiar nessa força sobrenatural da Igreja, é preciso fazer
a nossa parte conhecendo e apresentando ao público a verdadeira face da
ideologia de gênero escondida atrás de uma fantasia carnavalesca. Olha-nos
sorridente para conquistar-nos. Uma vez conseguido seu intento, fecha sua carranca
e ataca-nos impiedosamente para destruir a vida, a família e os valores sociais
alicerçados na lei natural moral que ensina a fazer o bem e evitar o mal.
Todavia, quem se julgar livre para defender os valores naturais e cristãos pode
ser duramente perseguido, moral e fisicamente, como já se faz, ainda que um
tanto veladamente, em não poucos países. A classificação de “retrógrado” e
outros nomes é muito comum na verbalização e condenação daqueles que conseguem
refletir sobre esses fatos.
Em
tempos como os nossos, ter coragem para defender os princípios cristãos
libertadores – é para a liberdade que Cristo nos libertou, Gl 5,1 – é expor-se
ao próprio martírio de sangue, mas as palavras do Senhor Jesus nos encorajam:
No mundo tereis tribulações, mas tende bom ânimo. Eu venci o mundo (cf. Jo
15,18-27).
Fazemos
votos para que todas as forças vivas da nação se unam em defesa da vida e da
família e, consequentemente, da sociedade em geral a fim de que possamos,
diante de Deus, deixar ao nosso povo em geral, especialmente às nossas
crianças, adolescentes e jovens, a certeza de que não fomos omissos e lutamos,
dentro da lei e da ordem, para que uma ideologia que pretende ser
“revolucionária” como a de gênero não os prejudicasse. Nem hoje, nem amanhã.